Pois é. Eu sempre gostei de Política, e acho que sempre fui parlamentarista. Não pude votar naquele plebiscito no Brasil porque era muito novo (o voto para maiores de 16 só foi aprovado quando eu completei 18!), mas mesmo assim eu já o defendia. E posso até dizer que essa era uma característica que me atraía no Canadá. Acreditem ou não, eu gosto de assistir o
Ontario Legislature e ver o chefe de governo tendo que se explicar na frente dos opositores quase todo dia. Portanto, considero-me um privilegiado por ter chegado aqui bem a tempo de poder acompanhar o parlamentarismo funcionando a todo vapor. Não apenas a eleição nacional, que ainda pude comparar com a dos Estados Unidos quase ao mesmo tempo, mas antes disso as provinciais e a escolha do
lieutenant general (representante da Rainha na província). E agora essa reviravolta quase sem precedente, já que última vez que uma coisa dessas aconteceu em nível nacional foi há mais de 90 anos, e que envolve instituições perfeitamente legais mas raramente utilizadas.
E como não poderia deixar de ser,
a Internet está em polvorosa com a novidade. Assim acho que não faria mal eu entrar na onda também, pelo menos para dar as minhas impressões como observador
quase externo (já que ainda faltam dois anos para que eu possa me tornar cidadão).
No meu entender, alguns canadenses estão muito acostumados a acompanhar o sistema americano, e acabam se esquecendo das diferenças entre parlamentarismo e presidencialismo. E também da grande diferença que há entre o bipartidarismo americano e o nosso pluripartidarismo. Eles reclamam que "elegeram" o primeiro ministro, e que agora o outro, que "perdeu" a eleição, que roubar o lugar do vencedor. É claro que não é assim que funciona no parlamentarismo, e é claro que o partido conservador sabe disso muito bem, embora seja exatamente essa visão que ele esteja defendendo em público na sua desesperada tentativa de se segurar no poder. Ou seja, continuam jogando para a platéia, ao invés de tentar fazer Política, como deveriam. Desde que cheguei aqui vi esse governo forçando a aprovação de todas as suas decisões com a ameaça de convocar uma eleição, o que finalmente acabaram fazendo, dois anos antes do previsto, para tentar desestabilizar a oposição. Até conseguiram enfraquecer um pouco os liberais, mas não conseguiram a maioria absoluta, o que já era esperado. Mesmo assim, passaram a governar como se a sua vitória tivesse sido total e não precisassem de mais nenhum compromisso.
Ora, se a maioria dos eleitores não votou no governo, acredito que é porque queriam ver alguma mudança, embora não concordassem exatamente como ela deveria ser. O próprio governo poderia ter lido o recado das urnas e demonstrado alguma vontade de mudar, mas não o fez. Aproveitando-se da divisão existente na oposição, acharam-se com cacife suficiente para propor até reduções no financiamento dos partidos. Ironicamente isso pode ter sido o impulso que a oposição precisava para finalmente se unir (afinal, já estão quase todos à esquerda da situação), e parece que nem mesmo voltando atrás o governo consegue desfazer a coalizão, agora que ficou demonstrado que ela não é impossível. E aqui entra o pluripartidarismo, onde coalizões são possíveis, e até comuns, embora às vezes pareçam esquisitas, como as que tivemos nos Brasil nos últimos governos. Mas isso faz parte da Política no melhor sentido da palavra. Não existe o "Bem" e o "Mal", mas vários interesses, conceitos e idéias diferentes, representadas pelos partidos que, como o nome diz, representam as diversas
partes da sociedade. E esses interesses e idéias nem sempre são conflitantes, tornando alguns acordos possíveis.
É claro que, no eventual governo de coalizão, os liberais não poderão fazer tudo o que fariam se tivessem conseguido a maioria sozinhos. E os neodemocratas também não vão conseguir tudo o que queriam. Mas eles acreditam que se fizerem apenas aquilo em que concordam, já será melhor, na visão deles, do que aquilo que os conservadores estão fazendo (ou deixando de fazer). E o dinamismo do sistema, exatamente o que estamos testemunhando agora, garante que assim que um dos membros da coalizão sair dos trilhos acertados, o sistema poderá se
readaptar mais uma vez.
A retórica dos conservadores parece enxergar apenas os liberais como seus opositores, que estariam tentando usurpar o poder só para eles valendo-se de um "artifício". Dessa forma, os outros partidos deixam de ser representantes dos eleitores que votaram neles e passam a ser apenas um instrumento, um empecilho que só serve para confundir a velha luta dos mocinhos contra os bandidos. Isso é particularmente perceptível quando se referem ao bloco Quebecois como "meros separatistas" e "anticanadenses". Mas se eles estão lá é porque representam o sentimento de alguns eleitores. Querer que eles sejam simplesmente excluídos do Parlamento significa alienar esses eleitores, ou seja, separá-los da comunidade política canadense. Isso me lembra uma frase que ouvi num episódio de South Park:
"Vamos evitar que esses lunáticos se suicidem, nem que para isso tenhamos que matá-los!".
Mas essa história toda ainda não acabou, e o parlamentarismo continua em movimento, para ambos os lados. O governo de coalizão já poderia ter começado, mas o primeiro ministro usou de suas prerrogativas para adiar a votação para a segunda-feira. E agora entra em cena a outra figura do parlamentarismo: o chefe de estado, a saber, a Rainha da Inglaterra. Mais especificamente aqui no Canadá, uma representante aprovada por ela, a governadora geral Michaëlle Jean. Alguns brasileiros talvez se lembrem que ela esteve visitando o nosso país no ano passado. Quando o primeiro ministro perder o voto de confiança do parlamento, ela deve aceitar a proposta da coalizão ou convocar novas eleições. Mas antes disso, o primeiro ministro ainda vai pedir que ela "suspenda" o parlamento. Teoricamente ela poderia até fechar o parlamento, mas a "suspensão" seria apenas um recesso para recomeçar tudo de novo apenas em Janeiro, dando tempo aos conservadores para elaborarem alguma estratégia. Parece que essa suspensão nunca foi solicitada, mas acredita-se que ela poderá ser concedida. Depois disso, o primeiro ministro, se notar que mesmo em Janeiro não poderá se sustentar, ainda poderia solicitar a ela uma nova eleição. Mas isso já é mais improvável que ela conceda, porque a última eleição foi há pouco mais de um mês apenas, e custou uns $300 milhões!
Dessa forma, o futuro imediato do governo será decidido por uma representante da monarquia, não eleita pelo povo. Alguns acham isso pouco democrático, mas vale lembrar que ela não decide isso sozinha: tem uma equipe de especialistas em direito constitucional para auxiliá-la nas decisões (algo como o
governo de especialistas que tantos brasileiros defendiam).
Com tantas convulsões e reviravoltas, eu não sei o que vai dar, muito menos quando. Sou mais simpático à coalizão, entre outras coisas porque todas essas mudanças na imigração foram instituídas pelos conservadores. Também porque o partido conservador não me pareceu muito preocupado em fazer Política propriamente dita. Mas eles estão lançando mão de todos os instrumentos disponíveis para esvaziar o movimento, e pode ser que consigam.
Agora, independentemente do resultado, que é muito bonito acompanhar de camarote todo esse sistema em funcionamento, isso é. E além disso, como já vi em alguns comentários na
Web, é interessante observar essa virada para a esquerda logo depois da eleição de Barack Obama ao sul da fronteira. Será que os "ventos da América do Sul", como disse Hugo Chávez, lograram alcançar até o "Verdadeiro Norte"?